sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Perdi o jeito

Perdi o jeito
Para escrever poesia.


Perdi o jeito para ver
O que me espera em frente,
Quem quero ter
Ou o que devo escolher.


Perdi o jeito para sorrir,
Perdi o jeito para amar,
Para ter alguém,
Para poder desejar mais alguém.


Perdi o jeito para aguentar a dor
De não ter ninguém
Com quem falar,
Com quem inventar histórias.


Perdi o jeito
Para perder novos jeitos.
Porque já os perdi todos
E não acho mais nenhum.


Se calhar nunca tive,
Nunca tive jeito para nada.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A terrível vida de Brian Watcher

Brian Watcher sentia-se só. Não que fosse seu costume mas, naquela noite, sentia como se o mundo pudesse desabar a seus pés sem ele querer, sequer, saber. Não sentia calor, apesar da fogueira estar a poucos passos de si, nem sentia vontade de rir das crianças que via à janela. Brian Watcher sentia que não pertencia ao local onde estava e, por isso, suspirou mais uma vez enquanto desviou o olhar para o chão.

Se, por acaso, encontrássemos alguém que conhecesse Brian Watcher e lhe perguntássemos o que achava dele, então a resposta seria sempre calorosa e alegre. No entanto, Brian não sentia isso. E sabia-o quando passavam semanas inteiras sem que o telefone tocasse ou quando faltava ao emprego e ninguém perguntava se estava bem. E porque hoje o telefone não tocara, nem Brian fora trabalhar, a dedução era simples. Olhou de novo para as crianças a brincar no exterior e lembrou-se do que a mãe, divorciada e sem qualquer namorado, lhe dissera quando era jovem: que ele um dia seria feliz, que encontraria alguém que o amaria e cuidasse dele enquanto por sua vez ele cuidaria dessa pessoa. E lembrou-se como a mãe dizia isso com uma lágrima ao canto do olho e sorria. Lembrou-se de como, durante anos, acreditou nisso mesmo, que alguém chegaria e que, da forma como o seu coração seria conquistado, então conquistaria o coração da outra pessoa também. Passou os seus dezoito anos crente nesse destino. E passou os vinte. E os vinte e cinco. Até que ali estava, agora, com vinte e oito e a começar a desconfiar dessa sina que a mãe lhe depusera. Apetecia-lhe gritar à mãe: “Vês? Enganaste-te! Não tenho ninguém, nem nunca ninguém me teve! Continuo aqui, dez anos depois, sem se cumprir o que disseste!”. Mas pensou que, se a tivesse à frente, não seria capaz de lhe dizer tal coisa. Acabaria por a abraçar e dizer que ainda acreditava. E perguntar-lhe-ia se ela, por sua vez, também acreditava. E a mãe dir-lhe-ia que sim, que apenas ainda não tinha chegado o tempo. A mãe dir-lhe-ia algo, o que fosse, para o ver feliz, mas já ali não estava. O tempo dela tinha chegado há uns meses, vitimada por um ataque de coração e nunca mais Brian dera um abraço a quem quer que fosse.

Correu as cortinas e saiu de casa. Mal deu o primeiro passo fora do seu lar uma bola bateu-lhe na perna. Ficou ali, estática, enquanto uma das crianças corria para ele. Brian Watcher sentiu algo de estranho enquanto o rapaz se aproximava. Fazia lembrar-se de alguém, mas não sabia bem de quem. Enquanto a criança encurtava a distância, Brian reconheceu-a. Era ele. Quer dizer, não podia ser bem ele. Era alguém muito parecido com ele, mas decerto, pensou, ser ele aquele rapaz era impossível. A criança chegou a Brian e olhou-o nos olhos. Durante alguns segundos ficaram estreitos, até que o rapaz se baixou para pegar na bola, agradeceu e foi-se embora a correr. Brian não dissera uma única palavra. Seguiu o rapaz, embora não corresse.

Cem metros à frente, o rapaz parou junto a alguns colegas e recomeçaram o jogo. Brian sentou-se num banco de madeira e ficou a olhar para as crianças. Como o pequeno rapaz o fazia lembrar-se de si próprio. Não apenas na aparência, mas também nos gestos. Corria de forma igual e, quando falava, os termos e o tom de voz eram exactamente iguais aos que usava naquela mesma idade. Durante duas horas ficou a olhar, até que o céu começou a escurecer. Os rapazes continuavam com a mesma energia que tinham no início mas alguns já voltavam para casa. O rapaz parecido com Brian continuava lá. Brian Watcher ouviu uns sussurros perto de si. Olhou para onde lhe parecia ser a origem do som e reparou em três raparigas, da mesma idade que os rapazes, a apontar e a falar entre si. Sorriam e, por vezes, coravam. Parecia que falavam dos rapazes e os elogiavam ou cortejavam. Brian não ligou mais aos sussurros e voltou a sua atenção de novo para a criança parecida consigo. No entanto, para sua surpresa, já lá não se encontrava ninguém, para além do rapaz e de uma senhora que se encontrava de costas, a olhar para o rapaz, ajeitando o colarinho deste com uma mão e segurando um saco com a outra. Brian levantou-se de rompante. Caminhou em passo ligeiro para a mulher mas parou a meio. A própria senhora tinha notado a presença dele e começara a voltar-se para Brian. Quando ficaram frente a frente, de olhos nos olhos, Brian sentiu as pernas a tremer e uma lágrima a correr-lhe o rosto. A senhora sorria apenas enquanto continuava a segurar no saco. Brian correu para ela e abraçou-a. Apetecia-lhe gritar e chorar, mas manteve-se agarrado à mulher que, em tempos, tinha sido sua mãe. Perguntou-lhe, com voz fraca, se ainda acreditava no que lhe dissera em tempos, se ainda acreditava se um dia teria alguém. E a mulher, sorrindo calorosamente respondeu-lhe que sim, que o amava e que iria ter alguém que o amasse também. Que não duvidava disso nem por um segundo. Brian sentiu-se confortável e feliz pela primeira vez desde que tinha sabido que a sua mão morrera. Enquanto a apertava com força e chorava, viu-se a si próprio, à criança que estava a olhar para os dois. A criança sorriu, parecendo, também ela, reconhecer-se no homem à sua frente. Segundos depois, transformou-se em névoa e desapareceu. A sua mãe continuou abraçada por mais uns segundos, até que se separou de Brian. Deu-lhe um beijo na testa e enquanto dizia que não sabia como ele tinha crescido tanto, começou a desaparecer também. Brian prostrou-se no chão, a chorar e voltou a sentir-se quente, mesmo sem lareira à sua beira, e feliz mesmo sem as crianças.

Nunca mais Brian esquecera aquele momento e, a partir daí, sempre que se sentia só, seguia as crianças e via-as brincar até que conheceu uma mulher, bela e simpática que o amou e que, por fim, validou as promessas da mãe. Nunca mais duvidou das palavras que a mãe alguma vez lhe dissera.